As “Mãos Ensanguentadas de Jesus”:
outro olhar possível - Reginaldo Veloso
Surpreendentemente
contemplado com o troféu LOUVEMOS/2018, “mérito especial”, concedido pela TV
Século 21, viajei do Recife a São Paulo, na manhã de 20/06, para recebê-lo, não
sem alguma ansiedade. Chegando ao aeroporto de Viracopos, em Campinas, um pouco
após o meio dia, esperava-me o Marcão, com a viatura da TV Século 21, devidamente
caracterizada pela logo das “Mãos Ensanguentadas de Jesus”.
Mal dei com
os olhos naquela inscrição, confesso que fiquei fortemente impactado. E mais
que rapidamente, em minha mente, se acendeu a visão do Juízo Final. Tanto
quanto a visão das Mãos ensanguentadas impactaram meus olhos, as palavras
taxativas do Mestre retiniram em meus ouvidos: “Afastem-se de mim malditos. Vão para o fogo eterno, preparado pra o
diabo e seus anjos. Porque, eu estava com fome, e vocês não me deram de comer;
eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me
receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e
na prisão, e vocês não me foram visitar”. Mais impactante ainda foi escutar
a pergunta dos condenados “Senhor, quando
foi que te vimos com fome ou com sede, como estrangeiro ou sem roupa, doente ou
preso, e não te servimos?”, seguida da resposta do Rei, que lhes dirá clara e inapelavelmente: “Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um
desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25,41-45).
E logo me
dei conta dos cravos que, hoje, traspassam
cruelmente as Mãos de Jesus:
· Primeiramente,
o cravo da fome: “Eu estava com fome, e vocês não me deram de
comer” (Mt 25,42ª): é só pensar nos mais de 13 milhões de desempregados,
com suas famílias, juntando a isso os cortes nos programas sociais que têm a
ver com o pão de cada dia. De dois anos para cá, nosso país, volta, assim, a
marcar vergonhosa presença no “mapa da fome” desenhado pela ONU, do qual havia
saído durante a gestão de um presidente operário. A fome causada pelo desemprego
tem muito a ver com a, com a infame “Reforma Trabalhista” que implanta
sistematicamente a precarização do trabalho, a insegurança no emprego, o
enfraquecimento dos Sindicatos, a perda de direitos sagrados, conquistados a
preço de sangue durante bem um século de lutas da Classe Trabalhadora.
Mas a fome tem a ver, sobretudo, com a realidade fundiária do país que,
desde a concessão das “Capitanias Hereditárias”, consagrou o latifúndio, muitas
vezes, improdutivo, como regime de posse e utilização da terra, condenando à
condição de “Sem Terra”, de norte a sul e de leste a oeste, uma legião imensa
de gente do campo.
À fome ou à ameaça da fome, se ajunta, o cravo do veneno, a traspassar todos os que trabalham nos campos e, muito mais,
todos os que consomem tudo quanto chega a nossas mesas contaminado pelo uso
abusivo de agrotóxicos. O Agronegócio brasileiro, representado poderosamente no
Poder Legislativo pela Bancada Ruralista, se demonstra vergonhosa e
criminosamente conivente com os interesses genocidas dos fabricantes
multinacionais desses venenosos insumos.
Passar fome ou envenenar-se por conta do que se come, eis o drama que
vivemos todos e todas neste país! Por conta do cravo da fome e do agrotóxico,
corre Sangue, hoje, das Mãos de Jesus!
·
Em
seguida, o cravo da sede: “Eu estava com sede e mão me deram de
beber”. Não quero referir-me apenas ao que ciclicamente ocorre o Nordeste e
de fato acaba de ocorrer nos últimos seis anos, fenômeno natural que bem pode
ser contornado com políticas de armazenamento de água e transposição de rios,
como veio ocorrendo nas gestões populares de passado recente.
Quero chamar a atenção para as deficiências todas das políticas de
saneamento básico, que deixam tanta gente passar necessidade de água em suas
moradias, sobretudo nas periferias de nossas cidades.
Mas, o cravo da sede, que vem traspassando as Mãos de Cristo hoje,
acontece, também e lamentavelmente, por conta do envenenamento dos mananciais e
dos lençóis freáticos, nas regiões pulverizadas pelos agrotóxicos do
Agronegócio, a que nos referimos acima, deixando populações inteiras privadas
do precioso líquido ou obrigadas a consumi-lo nessas condições.
E nossa preocupação aumenta quando sabemos da ameaça que pesa sobre o
nosso país submetido a uma gestão que se apressa em vender e privatizar todas
as nossas riquezas naturais, patrimônio precioso do povo brasileiro, entre
outras, a nossa ÁGUA. Por conta do cravo da sede, da falta de água e do
envenenamento das águas, corre Sangue, hoje, das Mãos de Jesus!
·
O
cravo da falta de habitação: “eu era estrangeiro, e vocês não me receberam
em casa”. São legiões de famílias morando mal ou simplesmente ”sem teto”. O
drama das famílias que moram em palafitas, à beira dos mangues ou nos
alagados... ou então ameaçadas pelo deslizamento de barreiras nas encostas dos morros...
ou ainda, ameaçadas por ordem de despejo e reintegração de posse, quando ousam
ocupar terrenos baldios, ociosos, à mercê das ambições da especulação
imobiliária, ou imóveis urbanos desocupados, inclusive prédios públicos, às
vezes, correndo o risco de tragédias, como há pouco aconteceu no centro de São
Paulo...
Ajuste-se a isso, o drama dos migrantes provindos de outros países,
sobretudo, nesses últimos tempos...
Por conta deste cravo da falta de habitação, corre Sangue, hoje, das Mãos
de Jesus!
· E
o cravo da nudez?... “Eu estava sem roupa, e não me vestiram”. Não
é difícil imaginar a situação, não só do “Povo da Rua”, mas de tantas famílias
que, ao longo de um inverno, que vai se demonstrando rigoroso, além da
dificuldade de se prover do alimento, com certeza, passa, igualmente, outras
necessidades básicas, por exemplo, sem poder abrigar-se do frio, por
impossibilidade de adquirir o agasalho necessário e suficiente. Pensemos nas
crianças e nos idosos passando frio, nas ruas ou nas favelas...Por conta do
cravo da nudez, corre Sangue, hoje, das Mãos de Jesus!
·
E
ainda o cravo do abandono na doença: “Eu estava doente (...), e vocês não me
foram visitar”. Para além do descaso com que certas famílias tratam seus
doentes, especialmente seus idosos, abandonando-os em hospitais públicos ou em
precários abrigos, estamos, dia após dia, assistindo ao descaso dos governos
com a Saúde Pública, sobretudo, o desmonte e sucateamento do SUS, uma das
maiores conquistas do povo brasileiro, 30 anos atrás, quando nossa Constituição
Cidadã de 1988 estabelecia que “saúde é um direito de todos e dever do Estado”.
Precisamos lembrar que a perversa lei que congelou os gastos públicos por
20 anos, aprovada pela tríplice “Bancada do Boi, da Bala e da Bíblia”, é a
grande responsável por esse perverso processo de sucateamento, que outra
finalidade não tem senão privatizar os Serviços Públicos.
Como se não bastasse, mais um crime hediondo está sendo cometido contra a
Saúde do povo: a principal fonte de recursos para a manutenção e avanço do SUS
seria a exploração do petróleo do PRÉ-SAL, que graças a nossos espúrios
governantes, está sendo vendido aos abutres das petrolíferas multinacionais.
Por conta do cravo do abandono na doença, corre Sangue, hoje, das Mãos de
Jesus!
·
Finalmente,
o cravo do abandono na prisão: “Eu estava (...) na prisão, e vocês não me
foram visitar”. Se por conta da doença, irmãs e irmãos nossos se encontram
abandonados em hospitais e abrigos, imaginem o que possa estar ocorrendo nas
prisões deste país!... Mas o abandono por parte das respectivas famílias, se agrava
exponencialmente por conta dos horrores da política carcerária deste país, uma
afronta escandalosa a tudo quanto se possa entender como Direitos Humanos
inerentes a toda e qualquer pessoa humana, onde quer que se encontre, não importa
em que circunstância ou vicissitude: além da
absurda superlotação, o que deveria ser um espaço de reeducação e
ressocialização, são antros de desumanidade e apodrecimento moral,
“universidades” do crime, a que as pessoas são relegadas, tanto por ineficiência
do Poder Judiciário, quanto por incompetência, irresponsabilidade e, mesmo,
perversidade do Poder Executivo, em todas as suas instâncias, de cima a baixo, do Ministério e das Secretarias de
Justiça a Agentes Penitenciários.
Mas há algo de mais grave, de abrangência muito maior e de consequências
muito mais funestas: a quantidade imensa de pessoas neste país, submetida às prisões ideológicas resultantes dos
preconceitos que sempre estiveram na raiz dos processos econômicos, sociais,
políticos e culturais que engendraram a sociedade brasileira, tradicionalmente
dominada por brancos, ricos, machos, cristãos e heterossexuais: no avesso das
categorias hegemônicas, os negros e as populações nativas, os empobrecidos e
toda a Classe Trabalhadora, as mulheres, os seguidores das religiões de matriz
africana, o segmento LGBT.
Igualmente, as prisões da
ignorância, quando se dificulta ou simplesmente se nega acesso à Educação... Em recentes experiências
de governos populares, o país parecia caminhar rapidamente, para um novo
patamar de Educação do povo, com a interiorização e ampliação do Ensino Técnico
e Superior, inclusive com as políticas afirmativas de concessão de quotas aos
segmentos mantidos até pouco tempo fora do alcance dessas possibilidades ...
Mas, estamos assistindo estarrecidos ao desmonte sistemático, ao esvaziamento progressivo
dessas políticas... Estamos assistindo ao sucateamento sistemático de todo o
sistema educacional do país, graças, sobretudo à lei que congelou os gastos
públicos, e a sorrateira proposta de privatização dos Serviços Públicos...
Piores ainda, talvez, as prisões da desinformação e da lavagem cerebral
sistemática a que a massa está sendo submetida, sendo impedida de perceber
criticamente a realidade, graças ao papel criminoso desempenhado pela grande Mídia,
patrocinadora do Sistema , e boa parte do que acontece com as Redes Sociais,
nas mãos dos produtores ou repassadores da “mentira institucional” e da
alienação planejada do povo, para que não veja, não se mobilize e não lute por
seus Direitos e contra todos esses desmandos...
Emblematicamente, quem esteve à frente de um processo virtuoso de
inclusão e de acesso das massas aos Bens de consumo e Serviços Sociais básicos,
minorando a aberrante desigualdade vigente desde sempre neste país, encontra-se
hoje condenado por uma Justiça viciada e aparelhada pelo Sistema, e preso nos
cárceres da Polícia Federal em Curitiba. Sem esquecer o assassinato encomendado
de Mariele Franco, mulher, negra, favelada, lésbica, uma vereadora eleita entre
as candidatas e candidatos mais votados no município do Rio de Janeiro.
Por conta do cravo do abandono nas prisões, das prisões ideológicas, das prisões
da ignorância, das prisões da desinformação, e das prisões políticas, corre
Sangue, hoje, das Mãos de Jesus!
As palavras que “o Rei” haverá de pronunciar no Juízo Final,
por graça, nos ecoam antecipadamente aos ouvidos, e vale a pena retomá-las: “Afastem-se de mim malditos. Vão para o fogo
eterno, preparado pra o diabo e seus anjos. Porque, eu estava com fome, e vocês
não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era
estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me
vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar”. E já
não valerá mais desculpa alguma, nem a pergunta: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como
estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?”. Porque a
resposta já nos foi adiantada em tempo: “Eu
garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses
pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25,41-45).
Os devotos das Mãos Ensanguentadas de Jesus, muito
especialmente, mas todos os Cristãos e Cristãs, estamos sendo, desde sempre,
responsabilizados pelos cravos que hoje fazem jorrar Sangue das Mãos de Jesus,
seja quando contribuímos direta e intencionalmente para a fome, a sede, a
nudez, o desabrigo, o abandono na doença ou na prisão, de tanta gente; seja
quando vemos esse filme de horror passar diante dos nossos olhos e fazemos como
o “sacerdote” ou o “levita” da conhecida e
famosa Parábola (Lc 10,25-37), passamos “adiante, pelo outro lado”.
O que de todos e todas nós se espera é que permitamos às Mãos
de Jesus, que constatamos cravadas por tantos cravos e chocantemente
“ensanguentadas”, passem, aqui e agora, a agir através de nossas mãos, para
arrancarem eficazmente, e o mais rápido possível, todos esses cravos tão cruéis
das mãos de tanta gente. E nós possamos, “naquele
dia”, escutar, felizes, o que Jesus dirá às pessoas justas, que souberam
ouvir e praticar a sua palavra: “Venham
vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai
lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me
deram de comer; eu estava com sede, e vocês me deram de beber; eu era
estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu
estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar”
(Mt 25,14-16).
É claro que se trata muito mais do que da tradicional
“caridade” que se costuma praticar entre cristãos e cristãs para com os
pedintes que batem à nossa porta ou encontramos pelas ruas...
E é para ser mesmo como?... Procuremos conversar, como vem
fazendo exemplarmente o Papa Francisco com o povo dos Movimentos Sociais
Populares... Essa gente nos saberá dizer, melhor que ninguém, o quê e como
fazer. Não começaria por aí a “Igreja em saída”?...
Mais do que nunca, precisamos atender ao convite que, há mais
de 50 anos, nos fazia o santo Papa João XXIII: arregalar os olhos para os
“sinais dos tempos”. E “quem tem ouvidos,
ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,29).
Oxalá, percebamos, em tempo, que ser cristão, ser cristã,
hoje, sem assumir a dimensão política da
nossa Fé, seria, quando muito, brincar de Evangelho... Seria nada entender do PAI NOSSO que rezamos, ao
não nos darmos conta do que pedimos, ou não nos colocarmos à disposição do Pai
para fazer a nossa parte... quando a alegria que nos vem da Fé é podermos alegrar-nos
por ver o seu Reino vir a nós, e a
sua vontade ser feita “assim na terra, como no céu”.
Reginaldo Veloso, presbítero leigo das CEBs
Assistente
do Movimento de Trabalhadores Cristãos - MTC
Assessor
Pedagógico do Movimento de Adolescentes e Crianças – MAC
Membro
da Equipe de Reflexão sobre a Música Litúrgica da CNBB
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